O SOL AO CANTO DA FOLHA
2024
Paródia do olho solar
Tenho um primo que diz que tem uns óculos de sol tão bons que até dão para olhar para o sol.
Mas para que queres olhar para o sol?
Gaston F., 30 anos, desenhador de bordados, entrou no asilo de Sainte Anne em Janeiro de 1924. Um mês antes, nas proximidades do Pére-Lachaise, pôs-se a fixar o sol, recebendo ordens para cortar um dedo. Sem hesitar, e sem sentir dor, rasgou o dedo indicador inteiro com os dentes. Fixou o sol para se hipnotizar e não questionou a ordem do astro que lhe dizia: “Faz qualquer coisa madraço, sai desse estado.” Depois dos sentimentos de suicídio, não era grande coisa ficar sem um dedo.
Também Van Gogh forçou o olhar para o sol, num exercício de delírio que resulta em pinturas de “sóis” gloriosos e por oposição, de girassóis murchos. O girassol, a flor solar por excelência acaba vergada e morta... A verdade e o seu oposto, já que segundo ele, o próprio sol tem a cor pestilenta do enxofre.
Bataille descreve este sol apodrecido como a mais elevada concepção mas também a coisa mais abstracta pois não devemos olhá-lo fixamente. Isto pressupõe uma certa loucura. O sol que não olhamos e que idealizamos é de beleza perfeita, o que olhamos será necessariamente horrível, pela própria incapacidade física do homem.
(...) Os olhos humanos não suportam o sol, nem o coito, nem o cadáver, nem o escuro, embora o façam com reacções diferentes.
O sol que brilha e seduz na elevação de Ícaro é o mesmo que derrete a cera que lhe cola as asas e faz com que caia. O homem desafia os seus constrangimentos físicos em troca dessa busca levada ao cúmulo do brilho ofuscante e ilusório do astro.
A Águia-deus, símbolo universal e primitivo fixa o astro de frente, procura esse fogo do céu e destinatário de sacrifícios aztecas. O Rá dos egípcios, a divisa de romanos e imperadores na figura redentora da águia que devolve ao homem a libertação.
Nos Guias de Navegação do século XV e XVI, são muitas as imagens dos astros como elementos essenciais para a compreensão do papel da Astronomia na navegação e calendários. O sol e a lua são muitas vezes dotados de traços humanizantes, a lua quase sempre melancólica e séria, o sol sorridente, sereno ou malandro. A figura humana nestes esquemas astronómicos é uma figura simples feita de traços elementares e os astros assumem o temperamento e as características físicas humanas. Com o avançar dos séculos, estes atributos humanos vão desaparecendo das faces destes astros, porque a seriedade da ciência assim o pede.
Nos livros de horas a presença do astro é frequente como alegoria divina, truncado e incompleto, de pequena dimensão e bem arrumado no diminuto espaço de uma iluminura. Os eclesiásticos e crentes aparecem em oração ou em poses de assombro ou submissão. Por vezes uma mão profética aponta o foco, outras vezes só vemos raios solares perfeitos. As figuras são representadas a olhar esse astro-Deus mas é-nos interdito o seu aspecto na totalidade.
E o sol ao canto da folha das crianças? Porque o cortam? Fazem iluminuras em folhas A3 mas não o eliminam, só o mutilam. A verdade e o seu oposto.
E um cego? Ele sente o sol. Mas não enlouquece porque não o vê.
No centro da pedra está a luz. Irradia mas ainda sem raios.
Queria vê-los. Usei uma máquina de corte. Eram bananas, depois dedos e salsichas. Agora são raios que se podem olhar mesmo sem óculos de sol.
Mas o meu astro está cortado. E não o dedo. A última palavra é da pedra, sem risco de loucura.
Brígida Machado
Évora, Novembro de 2024
Tenho um primo que diz que tem uns óculos de sol tão bons que até dão para olhar para o sol.
Mas para que queres olhar para o sol?
Gaston F., 30 anos, desenhador de bordados, entrou no asilo de Sainte Anne em Janeiro de 1924. Um mês antes, nas proximidades do Pére-Lachaise, pôs-se a fixar o sol, recebendo ordens para cortar um dedo. Sem hesitar, e sem sentir dor, rasgou o dedo indicador inteiro com os dentes. Fixou o sol para se hipnotizar e não questionou a ordem do astro que lhe dizia: “Faz qualquer coisa madraço, sai desse estado.” Depois dos sentimentos de suicídio, não era grande coisa ficar sem um dedo.
Também Van Gogh forçou o olhar para o sol, num exercício de delírio que resulta em pinturas de “sóis” gloriosos e por oposição, de girassóis murchos. O girassol, a flor solar por excelência acaba vergada e morta... A verdade e o seu oposto, já que segundo ele, o próprio sol tem a cor pestilenta do enxofre.
Bataille descreve este sol apodrecido como a mais elevada concepção mas também a coisa mais abstracta pois não devemos olhá-lo fixamente. Isto pressupõe uma certa loucura. O sol que não olhamos e que idealizamos é de beleza perfeita, o que olhamos será necessariamente horrível, pela própria incapacidade física do homem.
(...) Os olhos humanos não suportam o sol, nem o coito, nem o cadáver, nem o escuro, embora o façam com reacções diferentes.
O sol que brilha e seduz na elevação de Ícaro é o mesmo que derrete a cera que lhe cola as asas e faz com que caia. O homem desafia os seus constrangimentos físicos em troca dessa busca levada ao cúmulo do brilho ofuscante e ilusório do astro.
A Águia-deus, símbolo universal e primitivo fixa o astro de frente, procura esse fogo do céu e destinatário de sacrifícios aztecas. O Rá dos egípcios, a divisa de romanos e imperadores na figura redentora da águia que devolve ao homem a libertação.
Nos Guias de Navegação do século XV e XVI, são muitas as imagens dos astros como elementos essenciais para a compreensão do papel da Astronomia na navegação e calendários. O sol e a lua são muitas vezes dotados de traços humanizantes, a lua quase sempre melancólica e séria, o sol sorridente, sereno ou malandro. A figura humana nestes esquemas astronómicos é uma figura simples feita de traços elementares e os astros assumem o temperamento e as características físicas humanas. Com o avançar dos séculos, estes atributos humanos vão desaparecendo das faces destes astros, porque a seriedade da ciência assim o pede.
Nos livros de horas a presença do astro é frequente como alegoria divina, truncado e incompleto, de pequena dimensão e bem arrumado no diminuto espaço de uma iluminura. Os eclesiásticos e crentes aparecem em oração ou em poses de assombro ou submissão. Por vezes uma mão profética aponta o foco, outras vezes só vemos raios solares perfeitos. As figuras são representadas a olhar esse astro-Deus mas é-nos interdito o seu aspecto na totalidade.
E o sol ao canto da folha das crianças? Porque o cortam? Fazem iluminuras em folhas A3 mas não o eliminam, só o mutilam. A verdade e o seu oposto.
E um cego? Ele sente o sol. Mas não enlouquece porque não o vê.
No centro da pedra está a luz. Irradia mas ainda sem raios.
Queria vê-los. Usei uma máquina de corte. Eram bananas, depois dedos e salsichas. Agora são raios que se podem olhar mesmo sem óculos de sol.
Mas o meu astro está cortado. E não o dedo. A última palavra é da pedra, sem risco de loucura.
Brígida Machado
Évora, Novembro de 2024